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O Guardador De Rebanhos - Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)


Enviado por   •  1 de Mayo de 2014  •  6.489 Palabras (26 Páginas)  •  199 Visitas

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O Guardador de Rebanhos

Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa)

(Fonte: http://www.cfh.ufsc.br/~magno/guardador.htm)

I - Eu Nunca Guardei Rebanhos

Eu nunca guardei rebanhos,

Mas é como se os guardasse.

Minha alma é como um pastor,

Conhece o vento e o sol

E anda pela mão das Estações

A seguir e a olhar.

Toda a paz da Natureza sem gente

Vem sentar-se a meu lado.

Mas eu fico triste como um pôr de sol

Para a nossa imaginação,

Quando esfria no fundo da planície

E se sente a noite entrada

Como uma borboleta pela janela.

Mas a minha tristeza é sossego

Porque é natural e justa

E é o que deve estar na alma

Quando já pensa que existe

E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.

Como um ruído de chocalhos

Para além da curva da estrada,

Os meus pensamentos são contentes.

Só tenho pena de saber que eles são contentes,

Porque, se o não soubesse,

Em vez de serem contentes e tristes,

Seriam alegres e contentes.

Pensar incomoda como andar à chuva

Quando o vento cresce e parece que chove mais.

Não tenho ambições nem desejos

Ser poeta não é uma ambição minha

É a minha maneira de estar sozinho.

E se desejo às vezes

Por imaginar, ser cordeirinho

(Ou ser o rebanho todo

Para andar espalhado por toda a encosta

A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),

É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,

Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz

E corre um silêncio pela erva fora.

Quando me sento a escrever versos

Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,

Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,

Sinto um cajado nas mãos

E vejo um recorte de mim

No cimo dum outeiro,

Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas idéias,

Ou olhando para as minhas idéias e vendo o meu rebanho,

E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz

E quer fingir que compreende.

Saúdo todos os que me lerem,

Tirando-lhes o chapéu largo

Quando me vêem à minha porta

Mal a diligência levanta no cimo do outeiro.

Saúdo-os e desejo-lhes sol,

E chuva, quando a chuva é precisa,

E que as suas casas tenham

Ao pé duma janela aberta

Uma cadeira predileta

Onde se sentem, lendo os meus versos.

E ao lerem os meus versos pensem

Que sou qualquer cousa natural —

Por exemplo, a árvore antiga

À sombra da qual quando crianças

Se sentavam com um baque, cansados de brincar,

E limpavam o suor da testa quente

Com a manga do bibe riscado.

II - O Meu Olhar

O meu olhar é nítido como um girassol.

Tenho o costume de andar pelas estradas

Olhando para a direita e para a esquerda,

E de, vez em quando olhando para trás...

E o que vejo a cada momento

É aquilo que nunca antes eu tinha visto,

E eu sei dar por isso muito bem...

Sei ter o pasmo essencial

Que tem uma criança se, ao nascer,

Reparasse que nascera deveras...

Sinto-me nascido a cada momento

Para a eterna novidade do Mundo...

Creio no mundo como num malmequer,

Porque o vejo.Mas não penso nele

Porque pensar é não compreender ...

O Mundo não se fez para pensarmos nele

(Pensar é estar doente dos olhos)

Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...

Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,

Mas porque a amo, e amo-a por isso,

Porque quem ama nunca sabe o que ama

Nem sabe por que ama, nem o que é amar ...

Amar é a eterna inocência,

E a única inocência não pensar...

III - Ao Entardecer

Ao entardecer, debruçado pela janela,

E sabendo de soslaio que há campos em frente,

Leio até me arderem os olhos

O livro de Cesário Verde.

Que pena que tenho dele! Ele era um camponês

Que andava preso em liberdade pela cidade.

Mas o modo como olhava para as casas,

E o modo como reparava nas ruas,

E a maneira como dava pelas cousas,

É o de quem olha para árvores,

E de quem desce os olhos pela estrada por onde vai andando

E anda a reparar nas flores que há pelos campos ...

Por isso ele tinha aquela grande tristeza

Que ele nunca disse bem que tinha,

Mas andava na cidade como quem anda no campo

E triste como esmagar flores em livros

E pôr plantas em jarros...

IV - Esta Tarde a Trovoada Caiu

Esta tarde a trovoada caiu

Pelas encostas do céu abaixo

Como um pedregulho enorme...

Como alguém que duma janela alta

Sacode uma toalha de mesa,

E as migalhas, por caírem todas juntas,

Fazem algum barulho ao cair,

A chuva chovia do céu

E enegreceu os caminhos ...

Quando os relâmpagos sacudiam o ar

E abanavam o espaço

Como uma grande cabeça que diz que não,

Não sei porquê — eu não tinha medo —

pus-me a rezar a Santa Bárbara

Como se eu fosse a velha tia de alguém...

Ah! é que rezando a Santa Bárbara

Eu sentia-me ainda mais simples

Do que julgo que sou...

Sentia-me familiar e caseiro

E tendo passado a vida

Tranqüilamente, como o muro do quintal;

Tendo idéias e sentimentos por os ter

Como uma flor tem perfume e cor...

Sentia-me alguém que nossa acreditar em Santa Bárbara...

Ah, poder crer em Santa Bárbara!

(Quem crê que há Santa Bárbara,

Julgará que ela é gente e visível

Ou que julgará dela?)

(Que artifício! Que sabem

As flores, as árvores, os rebanhos,

De Santa Bárbara?... Um ramo de árvore,

Se pensasse, nunca podia

Construir santos nem anjos...

Poderia julgar que o sol

É Deus, e que a trovoada

É uma quantidade de gente

Zangada por cima de nós ...

Ali, como os mais simples dos homens

São doentes e confusos e estúpidos

Ao pé da clara simplicidade

E saúde em existir

Das árvores e das plantas!)

E eu, pensando em tudo isto,

Fiquei outra vez menos feliz...

Fiquei sombrio e adoecido e soturno

Como um dia em que todo o dia a trovoada

...

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